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Análise: Reflection of Mine (Switch) é um desserviço a quem sofre de transtornos mentais

Quando um assunto tão delicado é colocado em pauta, é necessário muito cuidado ao abordá-lo — o que não é o caso neste indie.


Sempre acreditei que videogames, assim como outras mídias, também podem exercer um papel informativo e, acima de tudo, representativo. Enquanto jogos de grandes desenvolvedoras muitas vezes apostam em conteúdos mais comumente aceitos pelo público, títulos indie se dão o direito de arriscar e ir mais além, explorando temáticas mais reflexivas, e The Almost Gone, GRIS e até mesmo INMOST são exemplos bem-sucedidos disso.

A princípio, quando escolhi Reflection of Mine, a ideia de abordar o transtorno dissociativo de identidade (TDI), antigamente conhecido como dupla personalidade, foi o que mais me chamou a atenção neste título desenvolvido pela Redblack Spade e publicado pela Ratalaika Games. Por mais que eu não seja da área da saúde, desde pequena me interessei pela saúde mental como um todo — ainda não sei muito bem o porquê disso, mas talvez tenha a ver com o fato de ser filha de mãe psicóloga —, então cegamente acreditei que este puzzle pudesse cumprir com o papel informativo no qual tanto acredito. Porém, me deparei com uma grande decepção em diversos aspectos.


Quem sou eu?

Com uma narrativa confusa dividida em quatro capítulos, somos apresentados a Lilly, uma garota que é diagnosticada com transtorno dissociativo de identidade. De acordo com o DSM-5 - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da American Psychiatric Association, o TDI é caracterizado pela "presença de dois ou mais estados de personalidade distintos ou uma experiência de possessão" (p.293).

Logo no começo do jogo, o psicólogo de Lilly afirma que ela queimou uma igreja e um hotel, ficou sumida por algumas semanas, testemunhou um assassinato cruel e fugiu de uma clínica psiquiátrica (erroneamente chamado de manicômio, vale ressaltar, termo que caiu em desuso). No entanto, a garota afirma que não se lembra de tais acontecimentos até ser apresentada a diários, a princípio escritos por ela, mas dos quais Lilly se lembra de ter realmente feito anotações apenas em um.

Já não se usa mais o termo "múltipla personalidade", e muito menos é uma síndrome

Depois disso, temos uma cutscene — muito bem ilustrada e dublada, por sinal — que contextualiza um pouco a situação de Lilly. Mesmo assim, o trabalho apresentado me deixou com a pulga atrás da orelha: como é possível personalidades, que supostamente deveriam ser distintas, dialogarem entre si de maneira tão casual?

Mesmo que nesse universo fictício de Reflection of Mine possamos usar a desculpa da licença poética, a narrativa mais parece uma tentativa de reinventar O Médico e o Monstro, romance escrito em 1885 por Robert Louis Stevenson; porém, o jogo conta com o agravante de reproduzir a ideia de transtorno mental que os filmes de terror do século passado costumavam abordar.

As diferentes personalidades de Lilly, cada uma com um nome diferente, se manifestam em determinados momentos desta história confusa. No entanto, assim como a narrativa, a presença delas é quase inexistente e só serve para aumentar ainda mais os estereótipos relacionados ao TID.

Ideia mal executada

Reflection of Mine é um puzzle no qual o jogador controla dois personagens ao mesmo tempo, cujos movimentos são simultâneos. Ou seja, ao escolher andar para a direita, duas das identidades de Lilly se movem nessa direção, e todos os movimentos precisam ser extremamente bem pensados e precisos.

Embora pareça ser uma ideia diferenciada para um puzzle, ela acaba sendo mal executada. A dificuldade evolui muito rapidamente, com estágios cada vez mais desafiadores, e a experiência acaba se tornando frustrante, ainda mais levando em consideração que há uma quantidade pré-determinada de movimentos que podem ser feitos por estágio.

Existem três modos de dificuldade: Phobia, Hysteria e Neurosis, que seriam o equivalente a fácil, normal e difícil, respectivamente. Para habilitar a última, contudo, é necessário ter completado a história pelo menos uma vez e então caímos em outro empecilho: em Phobia, não é possível fazer isso, então o jogo acaba forçando a jogatina no modo Hysteria.

Reflection of Mine até oferece algumas dicas e checkpoints nos dois primeiros modos, mas alguns labirintos acabam se tornando impraticáveis. Como agravante ao gênero puzzle, depois de tentativas frustradas, a jogabilidade acaba se tornando um exercício de tentativa e erro que descarta totalmente a ideia de “quebrar a cabeça” para achar as soluções dos estágios. Como mencionado anteriormente, por ser necessário controlar duas personagens simultaneamente, cada um dos cenários apresenta obstáculos e composições diferentes.

Este tipo de fonte é difícil de ler no modo portátil
Depois de perder meia hora tentando achar a solução para passar do terceiro estágio do primeiro capítulo, apelei para um passo a passo que achei na internet para avançar na história. Mesmo assim, não aguentei completar todas as fases de cada capítulo, terminando apenas a quantidade necessária para desbloquear o próximo.

Em certos momentos, é necessário realizar uma sequência enorme de passos em maior velocidade (no sentido de command input) para fugir de inimigos que se movem pelo cenário, como corujas e monstros. Contudo, o jogo não dá pistas quanto a isso e cabe ao jogador descobrir quando realizar esses movimentos, normalmente da pior maneira possível: morrendo e reiniciando o progresso.

Depois de morrer algumas vezes, é dada ao jogador a opção de participar de um minijogo estilo arcade no qual é possível coletar um item: a máscara teatral, que possui uma face triste e uma feliz, que serve para habilitar dicas de como completar os puzzles. Pode-se usar esse item quantas vezes forem necessárias no mesmo estágio, respeitando, claro, a quantidade adquirida.

Outra função interessante, porém igualmente mal executada, é a possibilidade de voltar um passo e refazê-lo. O jogador pode usar esse recurso até três vezes por cenário e o limite é reiniciado em caso de morte — isso no modo Hysteria. Não me dei o trabalho de habilitar o Neurosis para conferir os recursos, tamanho é o meu desgosto com Reflection of Mine.

"Bem" e "mal" são dois estereótipos relacionados ao TDI
Algumas identidades de Lilly podem, ainda, interagir com elementos do cenário, destruindo ou criandor obstáculos ou abrindo portas, por exemplo. Uma em particular, contudo, possui tempo limite para completar os labirintos, o que é totalmente frustrante. Os comandos são confusos e não existe um manual do jogo; dito isto, tive que descobrir na marra como abrir o menu principal para reiniciar um estágio ou voltar à seleção de fases.

Embora o modo Hysteria permita ao jogador ultrapassar o limite de movimentos de cada cenário, muitos dos puzzles possuem apenas uma solução. Isso é particularmente frustrante, pois errar significa recomeçar do zero caso o checkpoint passe batido, e neste jogo em específico, recomeçar significa repetir, às vezes, centenas (sem exageros) de movimentos para tentar chegar ao final.

Qualidade aquém da expectativa

A tela inicial, algumas cutscenes e até mesmo a trilha sonora tocada em certos momentos são excelentes, porém a parte artística de Reflection of Mine deixa muito a desejar como um todo. Os gráficos são extremamente simplórios e diversos efeitos sonoros, como gritos aleatórios em uma tentativa falha de jumpscare, são irritantes. Mesmo que a proposta seja criar um ambiente mais “sombrio” e “sério”, a desenvolvedora parece ter economizado esforços nesse aspecto.

A qualidade textual também não é boa, sobretudo a história, que pode ser facilmente ignorada — algo que prova quão mal escrito e desconexo é o roteiro. Sem suporte para o português brasileiro, existem falhas gramaticais e semânticas nos diálogos em inglês e alguns textos são apresentados em uma fonte incômoda e de difícil leitura.

Este tipo de "piada" deveria ter sido evitado
A discrepância entre artes e gráficos é evidente. Talvez o estilo mais cartunesco possa agradar a alguns, mas confesso que já vi outros jogos menores apostarem melhor na apresentação visual. Sinceramente falando, Reflection of Mine mais parece um produto amador feito como exercício em um curso de desenvolvimento de jogos.

Para refletir

Como afirmado no início desta análise, o grande trunfo de desenvolvedoras indie é a possibilidade de experimentação. Contudo, abordar um assunto tão sério como o transtorno dissociativo de identidade sem o mínimo de cuidado e pesquisa é transformar o jogo em um desserviço social. Demonizar e banalizar transtornos mentais, utilizando-se de estereótipos e termos do século 19, só prova quão problemática é a história de Reflection of Mine.

O ponto alto deste título, que deveria ser resolver os quebra-cabeças, acaba soterrado em um loop infinito e restritivo de tentativa e erro. No começo até pode parecer desafiador, mas logo se torna frustrante. E abrindo parênteses aqui, por mais que eu goste de puzzles e de “colocar a caixola para funcionar”, quando um jogo mais frustra que diverte, é sinal de que deve ser deixado de lado, especialmente se a história não é o suficiente para envolver o jogador.

Pontos positivos

  • Em alguns raros momentos, cutscenes e trilha sonora.

Pontos negativos

  • Qualidade aquém do esperado;
  • Estereotipação perigosa do transtorno dissociativo de imagem;
  • História mal desenvolvida e pouco envolvente, facilmente descartável;
  • Comandos confusos;
  • Puzzles extremamente exigentes, restritivos e punitivos.

Reflection of Mine — PC/Switch/XBO/PS4 — Nota: 3.0
Versão utilizada para análise: Switch

Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Ratalaika Games


Também conhecida como Lilac, é fã de jogos de plataforma no geral, especialmente os da era 16-bits, com gosto adquirido por RPGs e visual novels ao longo dos anos. Fora os games, não dispensa livros e quadrinhos. Prefere ser chamada por Ju e não consegue viver sem música. Sempre de olho nas redes sociais, mas raramente postando nelas. Icon por 0range0ceans
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